fbpx
Como conduzir a vida quando se tem um buraco no cérebro

Essa semana saiu uma matéria no The New York Times sobre Helen Santoro, uma cidadã americana que nasceu sem o lobo parietal esquerdo devido a um acidente vascular encefálico que sofreu ainda no útero de sua mãe. Entretanto, Helen teve um desenvolvimento normal, mesmo com o comprometimento dessa área tão crucial para a linguagem. No post do nosso blog essa semana, vamos explorar mais intensamente como esse caso ocorreu, porque é tão raro e como a maioria das pessoas que passam por casos semelhantes (literalmente um buraco no cérebro) reestruturam suas vidas.

Se familiarizando com um caso extraordinário 

Helen Santoro descreve sua jornada em detalhes pessoais na meteria publicada em Setembro de 2022 pelo jornal The New York Times. Nasceu de um parto prematuro e a encaminharam às pressas para a Unidade de Terapia Intensivs neonatal do hospital. Ao passar pelos testes que todo bebê passa ao nascer, os médicos perceberam que seu reflexo de sucção não estava forte o suficiente. Assim, a encaminharam para realizar exames de imagem de seu encéfalo. E é aí que sua história toma um rumo fora do normal.

Já no primeiro exame, detectaram que Helen havia nascido com um grande buraco em seu cérebro. Logo acima das têmporas, a garota não tinha o lobo temporal. Esta região é importante para diversas ações e comportamentos, como alguns tipos de memória, reconhecimento de emoções, e considerada crucial para a linguagem. 

Sua mãe acordaou então para uma tríplice médica composta  poe uma neurologista, pediatra e parteira, que explicaram que sua filha tinha passado por um Acidente Vascular Encefálico perinatal, ou seja, Helen sofreu um derrame ainda dentro do útero de sua mãe. Os doutores explicaram que a filha não seria capaz de falar e que precisaria de cuidados especiais por toda a vida. Relata ainda que a neurologista até mesmo imitou movimentos estereotipados de quem passa por  casos semelhantes para demonstrar os prejuízos motores que a acometeriam, como milhares de outros casos. 

O início das pesquisas

Aflitos com toda a situação, os pais a inscreveram em um projeto de pesquisa da New York University. Este projeto foi desenvolvido para acompanhar os efeitos do desenvolvimento de quem tinha passado por casos de AVE perinatais como este.

Entretanto, ao contrário dos outros milhares de casos de bebês que nascem com um verdadeiro buraco no cérebro, Helen relata que teve o desenvolvimento de uma criança normal, com todas as etapas a serem cumpridas: andar, falar, interagir.

Realmente, a relatora foi um caso improvável. Mas não único. Cientistas estimam que milhares de pessoas estejam vivendo com partes faltantes do cerebro. 

“Nossa miríade de redes neurais são capazes de se rearranjar com o tempo, mas como?” se pergunta a moça.

E ela não é a única que tem esse questionamento consigo. Sua infância foi cercada de pesquisadores interessados na mesma pergunta, realizando escaneamentos de seu cérebro, testando-a com quebra-cabeças, procuras por palavras e testes de reconhecimento. Até mesmo testes para saber como seu cérebro reagiria frente a exaustão, ficando noites acordadas em claro. 

De alvo de pesquisa à pesquisadora

Com o passar dos anos, os cientistas envolvidos no projeto no qual participava perceberam que Santoro não era como as outras crianças do estudo. Afinal, ela não apresentava déficits de nenhum tipo, apesar do buraco em seu cérebro. Assim, a retiraram da pesquisa. 

Entretanto, mesmo com outras coisas em sua vida, Helen relata que se apaixonou pela neurociência. Se interessou espacialmente pela área que supostamente deveria ser deficitária: a linguagem. Assim, começou a fazer estágio de pesquisa no mesmo laboratório no qual antes era paciente. Na faculdade, se graduou em neurociência.

Nos estudos desse laboratório que passou a integrar como estagiária de pesquisa, chegaram a encontrar dados de que bebês que passam por esses acidentes, possuem maior risco de problemas atencionais e comportamentais, com muitos dos participantes sofrendo de epilepsias e fraqueza muscular unilaterais, sendo que a maioria dos casos também apresentavam  lesões no hemisfério esquerdo.

O que se sabe sobre o lobo temporal

Por mais de século, acreditava-se que o hemisfério esquerdo era o centro da produção da linguagem e de sua compreensão. Importantes correlatos neurobiológicos como os de Brocá e Wernicke contribuíram para essa noção. Isso ocorre porque pacientes que tem lesões neste hemisfério (ou total ausência, como o caso do buraco no cérebro de Helen) não conseguem mais falar direito. Apresenta, portanto, problemas em diferentes aspectos da linguagem, como fluência, semântica e coerência do discurso.

Estudos mais atuais mostram que o lado esquerdo dos lobos temporais e frontais se ativam quando a pessoa lê ou ouve palavras, sendo essa considerada como uma circuitaria da linguagem. Entretanto, o seu processamento completo é ainda mais amplo, além de que estas regiões também se relacionam com outras funções. Contribuindo para essa visão holista, estudos mostram que palavras podem ativar regiões do cérebro relacionadas com o seu significado, como verbos de ação ativando áreas relacionadas à motricidade.

Unidos pela incompletude assintomática 

Ao ler sobre o caso de uma mulher que também não tinha o lobo temporal e não possuía sintomas assim como ela, Helen logo se interessou em participar do estudo da qual ela fazia parte. A pesquisa, com oito pacientes com “cérebros interessantes”, englobava indivíduos que tinham passado por AVEs perinatais, cistos, tumores ou crescimentos anormais, e remoções cirúrgicas, tanto nos hemisférios esquerdo quanto direito. 

Para as pessoas que apresentam este lobo temporal esquerdo, o mesmo seria ativado em diversos casos, inclusive ao ouvir sentenças, juntamente com o lobo frontal. No caso da outra paciente do estudo, que assim como Santoro tinha um buraco no lobo temporal, a apresentação dessas sentenças ativaram o equivalente no hemisfério direito. 

No caso de Helen, apresentando um correlato extremamente semelhante, os estudos de imagem apontaram que o processamento das sentenças ocorria mesmo nas outras áreas do hemisfério esquerdo. Este achado evidencia que nem sempre lesões fazem a funcionalidade migrar para o outro lado do cérebro, nem mesmo se forem grandes buracos. Isso poderia ter acontecido porque sua lesão é bem frontal, deixando bastante tecido ainda no no mesmo lado esquerdo para que essa função tomasse lugar lá.

Por que isso teria acontecido?

As redes neurais podem se rearranjar de um jeito especifico, podendo contornar lesões e procurando um jeito de suprirem as demandas do corpo. Mas, se essas lesões acontecem quando ainda se é um bebê, uma fase do desenvolvimento marcada pela alta plasticidade do cérebro, as redes podem se reorganizar totalmente. Com os estudos de imageamento do seu cerebro, Helen e os pesquisadores responsáveis observaram que as redes neuronais se reorganizaram ao redor de seu hemisferio faltante.

A plasticidade é um fenômeno caracterizado pela alta habilidade de remodelagem que o cérebro apresenta. Durante toda a vida, é responsável pelo aprendizado e estabelecimento de circuitos preferenciais, sendo formadas pela experiência e fortalecidas pela continua repetição. Em adultos que passam por algum tipo de lesão, ela é responsável pelos resultados que vemos durante períodos de reabilitação para ganho de funções perdidas. Entretanto, diferentemente de sua formação quanto às memórias, neste caso a plasticidade contorna problemas que vê pelo caminho (como lesões) de forma aleatória. Por isso existe a imprevisibilidade quanto aos resultados de tratamentos terapêuticos. 

Durante a formação do sistema nervoso, como na fase perinatal, já é um pouco diferente. O encéfalo não está totalmente formado, e muitas conexões fundamentais ainda não foram estabelecidas ou fortalecidas. Além disso, a capacidade plástica é muito maior, com o número de conexões formadas muito superior a quando somos adultos, mesmo que de forma aleatória. Dessa maneira, contornar problemas (como literalmente um buraco no cérebro) se torna mais plausível. Isso porque vias alternativas podem ser criadas e/ou fortalecidas com mais facilidade.

Helen acaba a matéria se perguntando porque ela não teve sequelas enquanto que as demais crianças dos estudos que participou quando jovem apresentavam essas deficiências. Por alguma razão, o seu cérebro conseguiu se rearranjar ao redor da parte faltante, enquanto o das outras crianças não.

Se intere sobre o caso no site do The New York Times.