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O futuro dos espaços sob uma ótica neurocientífica

O sistema nervoso evoluiu e foi selecionado para interagir com o ambiente à sua volta da melhor maneira possível, permitindo assim gerar comportamentos que garantam sua sobrevivência e novas experiências. Não apenas os arredores moldam nossas ações, mas nossas ações também moldam os arredores. E assim ocorre o encontro entre neurociência e arquitetura, colocando o indivíduo no cerne do desenvolvimento de novos lugares, locais esses que serão cada vez mais ergonômicos e pensados para melhorar a experiência humana. Vamos explorar como serão esses espaços que a neuroarquitetura reserva para o nosso futuro?

Entendendo as nossas tendências como indivíduos e como sociedade

O futuro é um campo incerto. Não é à toa que nos fascinamos e ficamos intrigados quando algum profissional diz ser capaz de prever o que vai acontecer conosco. Mesmo sem saber o que nos reserva, nos baseamos intensamente nele para estipular as decisões em nossas vidas: tanto individual e pessoalmente, quanto em campos científicos, as projeções e inferências fazem parte do nosso dia a dia e somos capazes de fazer isso analisando algumas métricas simples. Quanto mais informações temos, mais somos capazes de entender os nossos arredores no espaço e no tempo, afinal, o nosso encéfalo é uma máquina de completar padrões.

Podemos então pensar em algumas medidas simples relacionadas ao tempo e ao espaço. Nos últimos séculos tem aumentado gradativamente a proporção de pessoas vivendo em cidades do que em área rurais [0], e em áreas urbanas além de haver uma maior concentração de espaços desenhados, há uma tendência em se passar mais tempo dentro de algum recinto do que em áreas rurais [1], se refletindo na sociedade como um todo que tem passado cada vez mais tempo em espaços fechados, sendo que gastamos cerca de 80% de nossas vidas dentro de algum ambiente [2,3]. Esse processo pode ser extremamente prejudicial para a saúde humana, pois estudos apontam relações entre bem-estar e vivência em um mundo ao ar livre (sendo o contrário também verdadeiro), bem como também com a convivência, ou seja, a sociabilidade, que é perdida em ambientes fechados [4].

Por essa tendência humana, políticas públicas que incentivam experienciar o exterior não são o suficiente, sendo necessário então melhorar também o interior dos espaços para proporcionar melhor saúde e bem-estar aos indivíduos. Isso se faz ainda mais necessário frente a cenários antes tidos como remotos, a exemplo da pandemia causada pela COVID-19. Diversos indicadores de saúde na arquitetura focam principalmente nas doenças transmissíveis pelo ar ou pela água, mas não contabilizam os efeitos na saúde mental e social dos indivíduos [5].

A inversão da pirâmide etária e o reflexo na construção

Ainda acompanhando alguns dados sobre a população no mundo todo, uma tendência que observamos é o envelhecimento da população: com avanços na tecnologia e na saúde, cada vez mais a expectativa de vida aumenta, aumentando também a proporção de idosos na sociedade. Mesmo com um envelhecimento saudável, problemas físicos e cognitivos aparecem com a idade, como na visão, audição, coordenação, linguagem e memória. Dessa maneira, o design de ambientes para essa nova população tem que acomodar um leque de habilidades e promover simplicidade, flexibilidade e facilidade de uso nos objetos e nos espaços [6]. 

Não apenas o envelhecimento saudável acarreta nesses prejuízos, mas o não saudável também. Pessoas com demência muitas vezes têm uma percepção alterada do ambiente, mas ainda sim são capazes de interagir com ele, sendo que relações e situações ainda importam para elas, e portanto, o design do espaço interfere nesse processo [7]. Dessa maneira, escolhas que possam ser benéficas para essas pessoas são aquelas que usam do espaço como uma forma de reafirmação, que causem menos confusão, com contraste nos locais adequados, que facilitem a percepção visual, promovam inclusão e interação, sejam em escalas optimizadas, adequar as estimulações sensórias, além claro de serem acessíveis [8]. Guias ilustrados do governo australiano (em inglês) sobre como desenhar esses ambientes podem ser encontrados aqui e aqui.

Arquitetura assistiva e de casas de repouso

Em outro texto do nosso blog, vimos como a arte é capaz de influenciar nossas emoções e até mesmo comportamentos quando aliada à arquitetura. Goethe, um dos proeminentes poetas alemães, descreveu a arquitetura como “música congelada”, se referindo à equivalência entre as artes de eliciar emoções poderosas. De fato, estudos experimentais em casas de repouso em Taiwan revelam que a integração da arte visual, bem como um desenho de jardinagem baseado na cultura e história local, foram capazes de melhorar a evocação de memórias antigas, aumentando também a satisfação e felicidade de seus residentes [9].

Além disso, melhorias podem ser feitas à esses ambientes pensando também em idosos que sofrem com sintomas motores, como o caso da Doença de Parkinson, na qual quedas, instabilidade postural e mobilidade funcional podem ser remediadas, como por exemplo com ações na melhoria dos pavimentos, tanto em textura e visualização quanto em nivelamento, e estabilidade de superfícies e de móveis. Outras características que podem ser melhoradas são objetos no caminho bem como um amplo espaço para circulação [10].

A inclusão através da arquitetura

O design diferencial vem como suporte não apenas para os casos físicos, como explicitados no tópico anterior, mas também para ajudar em questões de necessidades especiais e como fator de assessoria em neuro-inabilidades, e muitas vezes, apenas o design interior não é o suficiente para tal, sendo necessária um planejamento estrutural adequado em suas próprias casas [11], que se beneficiam de exposições ao ambiente externo. Para isso, a acessibilidade das pessoas com essas condições neurológicas deve estar presente, bem como a idealização de áreas conjuntas que permitam socialização, junto a caminhos bem estruturados e que liguem de forma adequada todos os ambientes, com acesso à jardins e áreas de descanso, todas usando como guia os princípios do design universal [12].

De fato, o uso adequado da neuroarquitetura pode auxiliar em terapias reabilitativas [13], de modo a apresentar características que sejam calmantes e distratoras dos aspectos estressantes, ou seja, características aquelas que promovem o bem-estar através da arte, música, exercícios físicos, acesso à natureza e até mesmo o amparo proporcionado por animais [14]. De fato, alguns fatores do ambiente como qualidade sensorial, inteligibilidade e facilidade de previsibilidade do espaço, são essenciais ao se planejar ambientes para pessoas dentro do Espectro Autista, por exemplo [15] Essas características não são válidas apenas para os pacientes e residentes, mas também para os cuidadores e profissionais da saúde.

O desenho arquitetônico através da familiaridade é capaz de nos fazer sentir conforto, aconchego e seguros, e por isso é tão importante em locais de acolhimento e inclusão. Não apenas nos permite recordar de nossas experiências sensoriais, mas também de nossas reações emotivas que tivemos no local, segundo Antonio Damásio em seu livro “O sentimento de si” [16].

Imersão verde: áreas arborizadas como promotoras de saúde mental

O uso de áreas verdes já vem sendo amplamente utilizado como auxiliador na saúde mental, mas até hoje se restringe principalmente a hospitais e áreas da saúde. Retomamos aqui como os espaços verdes são capazes de promover melhoras em pacientes hospitalizados, reduzindo níveis de estresse e promovendo cura emocional, física e espiritual, e também auxiliar no desempenho das equipes médicas [17,18]

Entretanto, esta é uma condição que não permanecerá vigente por muito tempo. Com todos os benefícios que essa inclusão traz pela simples biofilia presente nos seres humanos, ou seja, pela predileção aos espaços naturais e coisas vivas, além do apelo estético, a integração entre cidade e natureza se torna cada vez mais uma realidade. Com isso, até o desenvolvimento de ferramentas de planejamento com embasamento científico está sendo cada vez mais explorado [19]. Essa implementação em áreas urbanas é tida até como uma técnica de terapia baseada na natureza, sendo capaz de diminuir o estresse  e auxílio na remediação de casos de depressão e ansiedade [20]; inclusive, a presença de árvores, corpos d’água, espaços abertos e vistas são frequentemente experiências associadas à benefícios no bem-estar, como propiciadoras de conexão e cuidado com os outros e maior senso sobre si mesmo (autoconhecimento) [21].

Interiorização da natureza

Não apenas o efeito urbano da natureza é bem estabelecido, mas o seu uso em espaços internos também é capaz de promover mudanças significativas no ambiente e ao seu usuário: o uso de plantas em ambientes fechados é capaz de auxiliar na purificação do ar, diminuindo o nível de poluentes, aumentando a umidificação e os níveis de oxigenação, que são métricas associadas a melhoras psicológicas por atuarem no estresse, e na performance de algumas tarefas, aumentando produtividade e diminuindo sintomas de desconforto e dor por modulação do humor [22]. Assim, novos projetos tendem a levar em conta a criação de espaços internos associados à natureza, como jardins de inverno e estufas.

Novos espaços

Com o avanço das descobertas da neurociência, sua aplicabilidade na arquitetura tende a crescer e se estabelecer como uma ciência capaz de moldar o ser humano por fatores externos à ele. Assim, novos espaços irão surgir de maneira que o espaço possa se tornar uma extensão do indivíduo, e não apenas um usufruto. Isso já se torna uma realidade se pensarmos que os espaços são fatores cruciais durante o desenvolvimento neonatal e infantil, o que impactaria por exemplo no design de escolas, centros de recreação [23,24] e até mesmo maternidades [25], uma vez que o ambiente uterino proporciona as condições adequadas para o desenvolvimento fetal, mas que pode não se refletir em uma unidade neonatal de terapia intensiva.

Nos nossos próximos textos, iremos explorar ainda o que a neuroarquitetura reserva para o ambiente corporativo, uma vez que o ambiente de trabalho também é passível de melhorias para aumentar a produtividade e o bem-estar de seus integrantes.

Tendo em vista o futuro e todos os avanços que aguardamos dele, temos que tomar ação, e a neuroarquitetura é uma das ferramentas que podemos usar para isso, incorporando nosso entendimento sobre as sensações humanas e como se influenciam. Nessas abordagens multi-sensoriais, o desenvolvimento de edifícios e áreas urbanas fará o melhor para promover desenvolvimento cognitivo, emocional e social [26].

Indicação de Leitura

Eberhard JP. Applying neuroscience to architecture. Neuron. 2009 Jun 25;62(6):753-6. doi: 10.1016/j.neuron.2009.06.001. PMID: 19555644. 

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Referências

[0] UN Department of Economic and Social Affairs – Population Division. World urbanization prospects: the 2018 revision of world urbanization prospects. https://www.un.org/development/desa/publications/2018- revision-of-world-urbanization-prospects.html. Published 16 May 2018. Accessed December 6, 2018.

[1] Matz CJ, Stieb DM, Brion O. Urban-rural differences in daily time-activity patterns, occupational activity and housing characteristics. Environ Health. 2015;14(1):88.

[2]. Bassett DR, John D, Conger SA, Fitzhugh EC, Coe DP. Trends in physical activity and sedentary behaviors of U.S. youth. J Phys Act Health. 2014;12(10):1102–11. 

[3]. Hofferth SL. Changes in American children’s time–1997 to 2003. Electron Int J Time Use Res. 2009;6(1):26

[4] Rice L, Drane M. Indicators of Healthy Architecture-a Systematic Literature Review. J Urban Health. 2020 Dec;97(6):899-911. doi: 10.1007/s11524-020-00469-z. PMID: 32888156; PMCID: PMC7704814.

[5] Pinter-Wollman N, Jelić A, Wells NM. The impact of the built environment on health behaviours and disease transmission in social systems. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci. 2018 Aug 19;373(1753):20170245. doi: 10.1098/rstb.2017.0245. PMID: 29967306; PMCID: PMC6030577.

[6] Farage MA, Miller KW, Ajayi F, Hutchins D. Design principles to accommodate older adults. Glob J Health Sci. 2012 Feb 29;4(2):2-25. doi: 10.5539/gjhs.v4n2p2. PMID: 22980147; PMCID: PMC4777049.

[7] Baillie J. Dementia-friendly design resource. Health Estate. 2014 Feb;68(2):49-53. PMID: 24620491.

[8] https://www.health.vic.gov.au/dementia-friendly-environments/designing-for-people-with-dementia 

[9] Chang CH, Lu MS, Lin TE, Chen CH. The effectiveness of visual art on environment in nursing home. J Nurs Scholarsh. 2013 Jun;45(2):107-15. doi: 10.1111/jnu.12011. Epub 2013 Feb 20. PMID: 23425241.

[10] Ramos JB, Duarte GS, Bouça-Machado R, Fabbri M, Mestre TA, Costa J, Ramos TB, Ferreira JJ. The Role of Architecture and Design in the Management of Parkinson’s Disease: A Systematic Review. J Parkinsons Dis. 2020;10(4):1301-1314. doi: 10.3233/JPD-202035. PMID: 32804100; PMCID: PMC7683074.

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[12] York SL. Residential design and outdoor area accessibility. NeuroRehabilitation. 2009;25(3):201-8. doi: 10.3233/NRE-2009-0516. PMID: 19893188.

[13] Dan B. Rehabilitative and therapeutic neuroarchitecture. Dev Med Child Neurol. 2016 Nov;58(11):1098. doi: 10.1111/dmcn.13246. PMID: 27704543.

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[16] O sentimento de si: o corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência. Antônio Damásio, ed. 14. Europa-América, 2003. 9721047570 9789721047570

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[22] Deng L, Deng Q. The basic roles of indoor plants in human health and comfort. Environ Sci Pollut Res Int. 2018 Dec;25(36):36087-36101. doi: 10.1007/s11356-018-3554-1. Epub 2018 Nov 1. PMID: 30387059.

[23] Herrington S, Brussoni M. Beyond Physical Activity: The Importance of Play and Nature-Based Play Spaces for Children’s Health and Development. Curr Obes Rep. 2015 Dec;4(4):477-83. doi: 10.1007/s13679-015-0179-2. PMID: 26399254.

[24] Cummins SK, Jackson RJ. The built environment and children’s health. Pediatr Clin North Am. 2001 Oct;48(5):1241-52, x. doi: 10.1016/s0031-3955(05)70372-2. PMID: 11579672.

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[26] Spence C. Senses of place: architectural design for the multisensory mind. Cogn Res Princ Implic. 2020 Sep 18;5(1):46. doi: 10.1186/s41235-020-00243-4. PMID: 32945978; PMCID: PMC7501350.