Modelos da psicologia e o comportamento humano
Você já deve ter se perguntado porquê existem tantas possibilidades de se acessar a mente humana… seria possível falar em modelos psicológicos melhores ou piores? Algo útil ou desprezível para amparar as psicólogas e os psicólogos a entenderem a mente humana?
A Vânia Marinelli, psicanalista, linguista e mestre em Semiótica, nos apresenta abaixo um pouco dessa discussão e nos ajuda a entender a importância dos modelos para organização teórica dos fenômenos. Seria a possibilidade de generalização que conferirá validade e utilidade científica para os modelos? Complementa, ainda, com a reflexão sobre o que representa toda essa discussão quando pensamos em diferentes modelos psicológicos e a importância que a fundamentação confere à segurança e eficácia deles. Vamos conferir essa discussão?
Modelos
Sob o ponto de vista cognitivo, modelo é um esquema teórico que representa um fenômeno ou conjunto de fenômenos complexos. Tal representação permite compreender e, eventualmente, prever a evolução desses fenômenos.
Por certo que a utilização de modelos teóricos não é prerrogativa apenas da psicologia – muito ao contrário. A ciência, como um todo, tem-se construído a partir de sucessivos modelos explicativos das porções da realidade a que cada ramo de estudo se atém, de modo que cada nova faceta científica descortinada se apresenta como nova faceta de um modelo já existente, ou, por outro lado, como uma substituição integral ou parcial de um modelo anteriormente considerado, no tocante a determinado objeto de estudo.
Cada modelo proposto é incentivado, neste caso, por dados científicos pré-existentes, e, ao mesmo tempo, atiça os pesquisadores a testar-lhes a cientificidade. Pois a ciência é uma construção dinâmica e oportunamente inacabada – cada momento seu revela em que ponto está o ‘encontro’ entre o ser humano e a natureza, neste ‘diálogo cognitivo’ que não tem data para terminar. A natureza/realidade se mostra, o homem a vê, mas nunca da mesma forma. Seus ‘modelos’ refletem sua visão, a cada instante do percurso.
Um exemplo famoso e muito interessante, a propósito de sua evolução, é o conjunto de modelos atômicos mais recentes que se sucederam, até que se chegasse à visão mais aceita na atualidade. J. Dalton (1766-1844), cientista inglês, em 1803, considerou os átomos esferas maciças, homogêneas, indivisíveis e indestrutíveis, baseado em seus experimentos de então; em 1911, E. Rutherford (1871-1937) imaginou o átomo semelhante ao sistema solar – elétrons carregados negativamente girando em torno de um núcleo carregado positivamente, em órbitas circulares; o físico dinamarquês, Niels Bohr (1885-1962), em 1913, completou o modelo de Rutherford, trazendo os novos conhecimentos da mecânica quântica para explicar de que maneira os elétrons ganhavam e perdiam energia em suas órbitas em torno do núcleo, efetivamente mudando de órbita ao ganharem ou perderem ‘pacotes’ definidos de energia, denominados ‘quanta’.
Por vezes é importante percebermos que determinadas práticas cognitivas humanas são mais gerais do que poderíamos imaginar. Desenhar modelos para a visualização de objetos de estudo é uma dessas práticas – observada em profusão na ciência, aliás.
Não seria diferente com a psicologia, ciência particularmente interessada no comportamento humano – suas motivações, feições que pode ostentar, e eventuais disfunções a requisitarem cuidados e terapêuticas solucionadoras. De modo geral, cada corrente do pensamento psicológico expõe o seu modelo de descrição e eventual terapeutização da psique humana.
Generalizações e universais
Num modelo temos, fundamentalmente, generalizações relativas ao nosso objeto de estudo – no caso da psicologia, generalizações ligadas ao psiquismo e comportamento humano, de forma que possamos estar falando do ser humano ‘em geral’, daquilo que, no geral, todos os seres humanos compartilham, por fazerem parte da mesma espécie. Portanto, cada modelo psicológico deve poder ser aplicado a todos os humanos, para que tenha validade e utilidade científica.
Além da generalização, os modelos precisam poder apresentar uma síntese genérica daquilo que estão explicando, para que se consiga abordá-los efetivamente. E eis que podemos entender, com relativa facilidade, por que os modelos científicos se servem tanto de linguagens simbólicas – de metáforas a fórmulas matemáticas: os símbolos têm uma incrível capacidade de sintetizar informação, além de conseguirem ‘re-apresentar’ os objetos do discurso científico, não importando se esses objetos venham de outros lugares (outros ‘espaços’) ou épocas (outros ‘tempos’). Símbolos representam outras coisas para além deles mesmos, porque representar vem de re-apresentar – ‘tornar presente outra vez’. Esta, aliás, a essência de toda linguagem humana, diga-se de passagem.
Quando a análise transacional (método psicológico criado em 1956, pelo psiquiatra norte-americano, Eric Berne) nos apresenta as três ‘posições’ a partir das quais se podem dar as interações psíquico-emocionais das pessoas – PAI / ADULTO / CRIANÇA – ela está falando de posições gerais (ocupáveis por qualquer um de nós), advindas de todo um conjunto de significados comumente atribuídos a figuras como pai (e mãe), adulto, criança. Pai, aqui, passa a simbolizar a autoridade protetora parental, e, eventualmente, também, um uso disfuncional do poder, expresso em autoritarismo; a ‘criança’, na análise transacional, representa o indivíduo dependente, com mais emocionalidade e menos racionalidade, cheio de necessidades, mas pouca capacidade para satisfazê-las; o ‘adulto’, por sua vez, representa o indivíduo com relativa autonomia emocional, que não precisa impor sua vontade aos outros, expressa suas emoções sem grandes excessos e/ou descontroles, e possui também uma visão crítica (racional) de si e do entorno.
Segundo o modelo da análise transacional, as relações humanas, sob o ponto de vista dos papéis emocionais assumidos, podem ser: PAI-PAI, PAI-ADULTO, PAI-CRIANÇA; ADULTO-ADULTO, ADULTO-CRIANÇA; CRIANÇA-CRIANÇA. Além disto, é possível a cada um de nós assumir, em determinadas circunstâncias, os papéis do PAI, da CRIANÇA ou do ADULTO, alternadamente. Isto porque nossos estados emocionais variam ao longo do tempo, e em relação aos fatos que experimentamos ao longo da vida.
Metapsicologias
Na psicologia do inconsciente (psicanálise de S. Freud (1856-1939), psicologia analítica de C. Jung (1875-1961)), esses modelos foram chamados de ‘metapsicologias’ – ‘além da psicologia’ – enfatizando, tacitamente, o caráter simbólico de cada modelo.
Uma psicologia, em tese, traduz, antes de mais nada, uma maneira de ver e definir o psiquismo humano, em termos de sua ‘topologia’ e de seu funcionamento (sua dinâmica). Mas uma META-psicologia é algo que está ‘além’ dessa psicologia, e serve para fazer referência a ela.
Os modelos psicológicos de Freud e Jung são sabidamente simbólicos/metafóricos, e procuram, através de suas metáforas:
a. definir funções psíquicas essenciais, relativas ao comportamento humano geral (por exemplo, Ego, Id, SuperEgo (Freud); Self, Ego, Sombra, Personas, Anima/Animus… (Jung));
b. definir as principais relações existentes entre tais funções – o que nos ajuda a ter uma ideia da ‘topografia’ que essas funções e relações respectivas implicam;
c. definir o funcionamento do aparelho psíquico descortinado pelo modelo, em termos, tanto de sua ‘normalidade’, quanto de suas eventuais disfunções (repressões, bloqueios, negações…).
Ao definirem como todo esse sistema funciona, nossos dois analistas sugerem também como o psiquismo descrito se desenvolve, da infância à fase adulta, e da fase adulta a mais maturações e evoluções da identidade, até o término da vida, se assim ambicionar o indivíduo.
Lastro
Cada modelo descrito pelas diversas correntes da psicologia precisa ser capaz de explicar como e por que os seres humanos desenvolvem e praticam seus variados comportamentos. Adicionalmente, esses modelos precisam estar embasados em possibilidades (neuro)biológicas concretas, que os sustentem. Epistemologicamente, a psicologia pressupõe a biologia. Modelos psicológicos precisam estar alinhados com as estruturas e funções que compõem o homem neurobiológico, sob pena de, se assim não for, descreverem seres humanos fictícios (o que seria adequar o objeto de estudo ao modelo, e não o modelo ao objeto de estudo…).
Nossos modelos de pensamento precisam ter lastro na realidade. Isto vale para a psicologia, e para qualquer outra ciência. Os modelos não podem simplesmente descrever o que desejamos que exista – eles precisam descrever o que a natureza (a realidade) comporta, o que ela permite que exista.
Nesse sentido, vale dizer que mais de um modelo psicológico pode se mostrar produtivo/eficaz na abordagem do comportamento humano. Mais e melhor do que se gerar uma ‘competição’ entre modelos, é preciso garantir-lhes fundamento. O fundamento é a ‘premissa verdadeira’ que a lógica sempre nos requisita para que possamos chegar a conclusões verdadeiras, em relação a quaisquer de nossos objetos de estudo.
Modelos psicológicos devem ser testados em seus fundamentos e, também, em sua eficácia. Usualmente, uma coisa está ligada à outra – quanto melhor nos acercarmos dos fundamentos de um modelo, mais poderemos assegurar sua eficácia, e vice-versa.