Ermitão japonês: conheça o homem que passou 30 anos em ilha deserta
Reportagem de Jorge de Souza, colunista da UOL, onde a matéria foi originalmente publicada.
Trinta e três anos atrás, o japonês Masafumi Nagasaki, então um operário de fábrica no Japão, com 53 anos de idade, decidiu mudar radicalmente de vida. Amargurado com a rotina que levava, angustiado com os valores da sociedade e deprimido com a implacável degradação da natureza, resolveu abandonar o trabalho, a família e a cidade onde vivia e foi morar, sozinho, em uma ilha deserta, na costa japonesa.
E assim ficou por quase 30 anos, totalmente afastado da civilização. Até que, quatro anos atrás, aos 82 anos de idade e com a saúde já debilitada pela idade avançada, Masafumi Nagasaki foi retirado de lá pelo governo japonês e levado para uma espécie de asilo na cidade de Ishigaki, com a ordem de nunca mais retornar à ilha.
Desde então, Masafumi, hoje com 86 anos, passou a preencher o tempo com longas caminhadas pelas ruas urbanizadas de Ishigaki, coletando lixo e bitucas de cigarro das calçadas, herança da obsessão por limpeza e amor à natureza que adquiriu nas quase três décadas que passou isolado em sua ilha, à qual estava proibido de voltar.
Viagem de despedida
Graças à ajuda do jornalista espanhol Alvaro Cerezo, dono de um site especializado em levar pessoas para viver experiências incomuns em lugares remotos do planeta (o www.docastaway.com), Masafumi conseguiu que as autoridades japonesas autorizassem o retorno do ex-ermitão japonês à ilha, pela última vez. Mas com uma condição: que ele não ficasse lá para sempre, como sempre foi o seu desejo. E assim Masafumi fez, cerca de um mês atrás, mais feliz do que criança em dia de Natal (veja vídeo no canal da UOL).
Sonho não realizado
Durante cinco dias, na companhia do jornalista espanhol e de um intérprete, Masafumi Nagasaki, o “Robinson Crusoé Japonês”, como ficou conhecido ao ser retirado da ilha, em 2018, matou as saudades da praia onde viveu em solitário por quase 30 anos, revisitou a pequena gruta onde se abrigava das intempéries (na qual marcava o passar dos dias com tracinhos de giz na pedra, feito um calendário primitivo), reencontrou antigos pertences, coletou vegetais na mata para comer, como sempre fazia, e vibrou com a chance de rever uma paisagem que lhe era mais do que familiar, ainda que pela última vez.
“A única condição que me impuseram para levá-lo até à ilha foi que eu o trouxesse vivo de volta, embora não fosse exatamente isso o que ele desejaria que acontecesse”, diz o jornalista espanhol, que conheceu o ermitão japonês quatro anos antes de ele ser retirado da ilha, mas, na época, não divulgou o fato para o mundo, em respeito à sua privacidade.
Ele sempre quis morrer em paz, em harmonia com a natureza, naquela ilha deserta”, diz Cerezo. “Mas isso, infelizmente, não será mais possível”
Eufórico na chegada
Quando foi retirado da ilha, o ermitão-ancião até tentou argumentar com as autoridades de saúde do Japão. Disse que “era importante ter um bom lugar para morrer, como aquela ilha”, e “que queria partir sem incomodar ninguém”. Não adiantou.
Masafumi levado de volta à civilização, à qual não se readaptou totalmente até hoje. “Só o vi realmente feliz quando desembarcamos na ilha”, diz o jornalista que conduziu o japonês até a ilha de Sotobanari, onde ele viveu, sozinho, mais de um terço da sua vida.
Ao desembarcar na ilha deserta que lhe serviu de lar por quase três décadas, Masafumi não parava de sorrir e, com as mãos juntas em direção ao céu, agradecia seguidamente a oportunidade daquele reencontro.
“No começo, eu usava roupas”, contou ao jornalista. “Mas, um dia, passou um tufão pela ilha e saiu tudo voando. Daí, conclui que não precisava andar vestido num lugar onde não havia mais ninguém”.
Pena de tirar os peixes do mar
Na ilha, Masafumi, um vegetariano convicto, se alimentava apenas com legumes e verduras que ele mesmo plantava, além de algum arroz, que, de vez em quando, ia buscar em uma ilha próxima, única ocasião na qual se vestia. Embora estivesse rodeado de mar por todos os lados, não pescava, porque tinha pena de tirar os peixes da água. Também pelo mesmo motivo, se recusava a comer os ovos que as tartarugas depositavam na areia da praia.
“Quem já viu um filhotinho de tartaruga correndo para o mar, logo após sair do ovo, não deveria pensar nessa hipótese”, analisou durante uma longa entrevista que deu ao jornalista, na qual expressou inúmeras vezes o seu amor à natureza.
“Eu não teria sobrevivido se não obedecesse às leis da natureza. Ela sempre precisa ser respeitada”, diz o ex-ermitão, agora condenado a terminar os seus dias no mesmo local de onde havia fugido: as urbanizadas cidades do Japão.
Obsessão por limpeza
Desde que decidiu viver sozinho, feito um náufrago voluntário, em Sotobanari, no extremo sul do Japão, Masafumi Nagasaki desenvolveu profundo respeito pela natureza e uma verdadeira obsessão por limpeza. Quando repórteres começaram a chegar à ilha, a fim de conhecê-lo, ele os obrigava a, antes de desembarcar, mergulhar no mar, “para se lavar e não contaminar” o local. “Não posso ficar doente”, explicava. Mas, um dia, por conta da idade avançada, ficou. Foi quando o governo japonês resolveu tirá-lo de vez da ilha.
Só sentia falta de um isqueiro Enquanto viveu em sua ilha deserta, Masafumi garante “não ter sentido falta de nada” — exceto, talvez, de um isqueiro, que ele considera, até hoje, “a mais incrível invenção da humanidade”, porque precisava fazer fogo, a fim de preparar sua comida.
Na ilha, sempre tive tudo o que precisava e nenhum dinheiro, que é a pior coisa do mundo”, disse, ao partir e acenar, pela última vez, para a ilha que transformou sua vida, 33 anos atrás.
Campeão entre os ermitões
Até onde se sabe, Masafumi Nagasaki foi o ermitão que mais tempo passou em uma ilha deserta. Mas não o único homem do mundo a trocar a vida na cidade pela simplicidade de um pedaço de terra cercado de água por todos os lados. Mesmo em tempos recentes, outros fizeram isso.
Um dos casos mais exemplares disso foi o do “casal” inglês Lucy Irvine e Gerald Kingsland, que sequer se conheciam quando decidiram passar um ano inteiro juntos, em uma ilha desabitada da Oceania, no início dos anos de 1980, como parte de um “experimento” – que, obviamente, não deu certo e transformou a convivência dos dois em um inferno.
Nem todos, porém, sofreram tanto assim. Ao contrário, alguns gostaram tanto da experiência, que, tal qual o japonês Masafumi Nagasaki, passaram a sonhar em viver daquela forma para sempre. Um deles foi o neozelandês Tom Neale.
Entre as décadas de 1950 e 1970, Neale se tornou particularmente famoso por viver em um desabitado atol do Oceano Pacífico por mais de 15 anos, sendo visitado por quase todos os barcos que por ali passavam. Mas, apesar da tamanha popularidade, Neale também não conseguiu terminar os seus dias na ilha que tanto amava. Transferido à força para uma cidade, a fim de tratar da saúde, morreu no leito de um hospital e foi enterrado em um cemitério urbano convencional, embora seu desejo sempre fora que seus restos fossem levados para a ilha. Nela, hoje, existe apenas uma pequena placa com o seu nome.
Resignado
É o que também deve acontecer em Sotobanari, quando o octogenário japonês desembarcar na sua nova ilha celestial, onde passará a eternidade, já que não lhe foi permitido morrer na ilha que tanto ama.
“Talvez, isso aconteça rápido”, diz Masafumi, resignado por não poder morrer aonde gostaria, mas satisfeito por, ao menos, ter se despedido da ilha que mudou sua vida.
Opinião: o que a neurociência diz sobre o isolamento?
Com o avanço da pandemia, diversos países adotaram uma política de lockdown ou isolamento social para conter o avanço da disseminação do coronavírus. Entretanto, o isolamento social forçado traz consigo diversas consequências negativas para a vida do indivíduo: diminuição na performance cognitiva, bem como declínio cognitivo acelerado, prejuízos no funcionamento executivo, aumento dos sintomas depressivos, maior sensibilidade à ameaças, levando assim a um impacto nas emoções, decisões, comportamentos e interações interpessoais que podem contribuir para uma associação com a solidão e morbidade.
Entretanto, o isolamento voluntário, por curtos períodos de tempo, se mostra uma medida eficaz no combate ao estresse e ansiedade gerados pela correria do dia-a-dia. Talvez tenha sido isso que tenha impulsionado Masafumi Nagasaki a procurar uma vida mais pacata: as condições apresentadas muitas vezes podem se tornar maçantes e gerar um sentimento de pressão em cima de tantas exigências e poucos retornos da vida em sociedade. Para o ermitão em questão, a percepção de uma vida conectada à natureza trouxe paz e alívio maiores do que aquelas que foram construídos em cima de suas experiências prévias em uma sociedade.
Não podemos, entrentano, nos esquecer que a natureza do ser humano é ser social. Por isso é importante ficarmos atentos à sinais de isolamento, que podem indicar alguma disfunção social, biológica e psicológica. Os momentos de distanciamento são necessários para nossa saúde mental, mas manter um equilíbrio social também se faz necessário para essa manutenção.