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Autoconhecimento: o que a neurociência tem a contribuir?

Cercados por um mundo cada vez mais dinâmico, entender como nos comportamos se torna indispensável para uma convivência harmônica e para a otimização da gestão pessoal. Garante-se assim melhores resultados e certificando um aumento no bem-estar. Reconhecer comportamentos, interesses, motivações, padrões de ação e formas de interagir com as pessoas tem se tornado um objetivo cada vez mais comum entre as pessoas e no mercado de trabalho. E o autoconhecimento é tudo isso. Sua relação com os processos mentais dos indivíduos é quase que identitária, e portanto a neurociência tem grande influência sobre o assunto. Mas como se dá essa relação? Vamos explorar no texto de hoje!

O que é o autoconhecimento?

Autoconhecimento é um componente crítico da personalidade: revela sobre preferências, valores, objetivos, motivações, regras e estratégias que regulam o comportamento. São importantes, portanto, porque indicam quais domínios do comportamento revelam prioridades. Além disso, representa os desejos do subconsciente, bem como as ideias de completá-los ou evitá-los. [1]

Para que possamos entender nossa própria consciência, e nossos processos mentais em geral, precisamos também entender como representamos a nós mesmos em nossas mentes. Como essa representação mental, ou o self, se liga com as representações das experiências que estamos passando no momento. E como essa ligação é preservada, perdida, quebrada, deixada de lado ou restabelecida por nossa memória. [2]

Considera-se que a capacidade de reconhecer a si próprio uma diferença fundamental entre humanos e outras espécies. Entretanto, novas evidências apontam que diversos animais possuem comportamentos que indicam possuir essa noção também. [3]

O autoconhecimento é um processo que deve ser explorado desde as fases iniciais do desenvolvimento. O uso de narrativas infantis de contos de fadas, por exemplo, é capaz de ampliar não somente a criatividade, mas como o autoconhecimento também, tornando-se mais confiantes devido a consciência pessoal em relação às etapas da vida. [4]

Os diferentes tipos e classificações para o autoconhecimento

Estudos indicam diferentes formas de classificar o autoconhecimento, sendo uma delas o autoconhecimento baseado na intuição, e o outro baseado na evidência. Para estes, podem ser atribuídas diferentes redes de ativação neural, fundamentadas na cognição social automática ou então na cognição social necessária de esforço. [5]

Já outros estudos dividem o autoconhecimento em experiencial ou reflexivo. O primeiro é definido como uma sensibilidade contínua ao eu no presente. Já o segundo é descrito em termos de esforços pessoais para integrar experiências vividas no passado. Estas separações indicam até mesmo uma correlação com habilidades educacionais em predizer a performance dos alunos dentro da academia, por exemplo. [6]

Outra forma de estudá-lo é dividindo-o em uma representação independente ou dependente do contexto. Ou seja, atributos gerais ou atributos pessoais em determinado contexto (sendo visto como um professor, ou como uma mãe). Ambas as noções estão associadas com ativações no córtex pré-frontal medial, mas as independentes de contexto tiveram maior ativação nessa área, enquanto que as dependentes de contexto tiveram maiores graus de ativação em regiões mais posteriores, como córtex cingulado e retrosplenial. Isso significa que, ao ativar tanto as mesmas regiões como regiões diferentes, o autoconhecimento pode ser considerado como multidimensional. [7]

Há ainda uma noção de autoconhecimento pessoal x profissional. O pessoal permite que o indivíduo conheça a sua essência, alcançando melhor qualidade de vida e bem-estar, adquirindo autonomia sobre sua vida, história e objetivos. O profissional, por outro lado, reside na busca pela potencialização e otimização de um processo de foco, paciência, perseverança e vontade de se desenvolver, contribuindo assim da melhor forma para a organização em que está.

A famosa divisão em cinco

Além disso, podemos classificar também como 5 tipos de autoconhecimento, sendo que se baseiam em diferentes formas de informação. Há o eu ecológico, percebido diretamente em respeito ao ambiente físico a sua volta. O eu interpessoal, estabelecido por comunicação e expressões emocionais entre os indivíduos. Há também o eu estendido, que se baseia na memória e na antecipação que dela deriva. O eu pessoal, que aparece quando descobrimos que nossas experiências são apenas nossas. O eu conceitual, que obtém seu significado através de uma rede de suposições baseadas na socialidade. Dificilmente se experienciam separadamente, mas podem diferir quanto à acurácia e em diferentes patologias. [8]

Autoconhecimento e a mudança comportamental

Alguns trabalhos sugerem que o autoconhecimento e a inteligência emocional caminham juntos para a mudança comportamental, algo tão procurado pelas pessoas. Estes indicam ser a gestão de emoções essencial para possibilitar o autoconhecimento, afetando a vida do indivíduo nas relações pessoais, no trabalho e na vida em sociedade num geral através da mudança de comportamentos. [9]

Entretanto, o autoconhecimento não implica necessariamente na capacidade de controlar o próprio comportamento. Estudos que relacionam comportamentos como o uso de preservativos entre homens com o autoconhecimento, por exemplo, apontam que existe uma dificuldade entre informar sobre o uso aos seus parceiros e de fato promover o uso. [10]

Estudos confirmam o potencial do autoconhecimento para estudar processos auto-regulatórios e sugerem que o aumento do mesmo pode ser útil em casamentos, uma vez que este se correlaciona positivamente com satisfação matrimonial e negativamente com índices de problemas interpessoais. [11] 

A metacognição, caracterizada como a habilidade de monitorar e controlar a própria cognição, é considerada como um importante componente do autoconhecimento. Este processo apresenta suas principais bases encefálicas no lobo frontal, e está, portanto, sob efeitos da ativação do eixo HPA, coordenador do estresse em nosso corpo. De fato, apresentamos menor controle sobre nossa própria mente quanto a predição de nossa própria performance. [12]

Como investigar algo tão subjetivo?

O autoconhecimento pode ser testado em um paradigma que mede a congruência entre o que o indivíduo crê da maneira que se comporta e a maneira como realmente se comporta. Estudos que abordam essa metodologia indicam que o autoconhecimento pode ser vantajoso para relações interpessoais, fornecendo então um grande valor social. [13]

A extensa investigação sobre o autoconhecimento tem levado, desde a década de 80, a trajetórias de conciliação com a complexidade da experiência de si mesmo de cada indivíduo com a riqueza de informações sobre essas teorias, que tem se amplificado com as novas metodologias e técnicas de estudo. [14]

O estudo sobre o autoconhecimento é amplamente baseado no auto-relato, sendo que Skinner, considerado como um dos principais nomes do behaviorismo (uma corrente de pensamento sobre o comportamento) propõe que o autoconhecimento é gerado por contingências sociais, ou seja, as possibilidades as quais estamos sujeitos, como desemprego, maternidade, prisão, velhice e morte. Por sua vez, essas contingências colocam os relatos do indivíduo sob o controle do seu próprio comportamento, sendo que a relação entre comportamento e suas consequências controlam o auto-relato. [15]

Ferramentas para aplicação 

O uso de ferramentas como o Eneagrama, assim como da Teoria Cognitivo-Comportamental, visa proporcionar aos seus praticantes maior autonomia e autoconhecimento, despertando interesse pelo desenvolvimento pessoal e trazendo conteúdos que podem ser objeto de trabalho em terapia. [16]

Práticas como mindfulness se relacionam com o autoconhecimento por serem domínios da autoconsciência, ambos se associando com uma variedade de fatores relacionados à saúde. Assim, a autoconsciência como fator do autoconhecimento pode contribuir de maneira única para a explicação de diferenças individuais em fatores de saúde. [17]

A atuação de um terapeuta também depende do seu autoconhecimento. Cada situação e cliente demandam modos mentais, comportamentos diversos e multiplicidade de experiências que um psicoterapeuta precisa ter para poder compreender um cliente. [18]

Apenas benefícios? O lado obscuro do autoconhecimento

Entretanto, apesar dos benefícios do autoconhecimento, ele também pode apresentar custos. A habilidade de predizer seu próprio comportamento futuro é relevante, mas segundo estudos a maioria das pessoas encontra dificuldade neste quesito (Vallone, Griffin, Lin e Ross, 1990). Além disso, a maioria das pessoas não busca um autoconhecimento acurado, pois apenas o fazem quando acreditam que possuem todos os recursos necessário para lidar com um possível resultado negativo (Trope e Neter, 1994): “pessoas que apenas procuram a verdade quando acham que essa não os irá devastar-los não estão buscando pela verdade”. [19]

As pessoas tendem a bloquear pensamentos e sentimentos indesejáveis através de uma supressão consciente e até mesmo inconsciente, mesmo que consigam de fato ou não. Outro motivo da falha no autoconhecimento pode ser pela inacessibilidade de processos mentais como percepção, aprendizado, personalidade, atitudes e auto-estima. Nem sempre é vantajoso ter percepções sobre si mesmo que correspondem perfeitamente com a realidade, mas aumentar a noção sobre motivações inconscientes pode ser benéfico. [20]

Recomendação de leitura

https://www.ibccoaching.com.br/portal/coaching-e-psicologia/importancia-do-autoconhecimento/

Referências

[1] Markus, H. Self-Knowledge: An expanded view. Journal of Personality. Vol 53 Issue 3. 1983 https://doi.org/10.1111/j.1467-6494.1983.tb00344.x

[2] Kihlstrom JF, Klein SB. Self-knowledge and self-awareness. Ann N Y Acad Sci. 1997 Jun 18;818:4-17. doi: 10.1111/j.1749-6632.1997.tb48242.x. PMID: 9237462.

[3] Lage CA, Wolmarans W, Mograbi DC. An evolutionary view of self-awareness. Behav Processes. 2022 Jan;194:104543. doi: 10.1016/j.beproc.2021.104543. Epub 2021 Nov 17. PMID: 34800608.

[4] Estrada, R.  Era uma vez dentro de nós!: as narrativas a serviço da criatividade e do autoconhecimento. Repositório Institucional da Universidade Fernando Pessoa. 2014.

[5] Lieberman MD, Jarcho JM, Satpute AB. Evidence-based and intuition-based self-knowledge: an FMRI study. J Pers Soc Psychol. 2004 Oct;87(4):421-35. doi: 10.1037/0022-3514.87.4.421. PMID: 15491269.

[6] Ghorbani N, Watson PJ, Bing MN, Davison HK, LeBreton D. Two facets of self-knowledge: cross-cultural development of measures in Iran and the United States. Genet Soc Gen Psychol Monogr. 2003 Aug;129(3):238-68. PMID: 15134127.

[7] Martial C, Stawarczyk D, D’Argembeau A. Neural correlates of context-independent and context-dependent self-knowledge. Brain Cogn. 2018 Aug;125:23-31. doi: 10.1016/j.bandc.2018.05.004. Epub 2018 Jul 27. PMID: 29807267.

[8] Ulric Neisser (1988) Five kinds of self‐knowledge, Philosophical Psychology, 1:1, 35-59, DOI: 10.1080/09515088808572924

[9] Theodoro, M; Sousa, A; Carvalho Ribeiro, LA; Inteligência emocional e autoconhecimento como fatores essenciais para a mudança comportamental: revisão sistemática de literatura. 2021.

[10] Maiara Medeiros Brum, Lenice do Rosário de Souza, Ana Teresa de Abreu Ramos Cerqueira, AUTOCONHECIMENTO E AUTOCONTROLE: UMA ANÁLISE DE COMPORTAMENTOS ACERCA DO USO DE PRESERVATIVOS ENTRE HOMENS QUE FAZEM SEXO COM HOMENS, The Brazilian Journal of Infectious Diseases, Volume 26, Supplement 1, 2022, 102111, ISSN 1413-8670, https://doi.org/10.1016/j.bjid.2021.102111.

[11] Ghorbani N, Watson PJ, Fayyaz F, Chen Z. Integrative self-knowledge and marital satisfaction. J Psychol. 2015 Jan-Apr;149(1-2):1-18. doi: 10.1080/00223980.2013.827614. Epub 2014 Feb 18. PMID: 25495159.

[12] Reyes G, Silva JR, Jaramillo K, Rehbein L, Sackur J. Self-Knowledge Dim-Out: Stress Impairs Metacognitive Accuracy. PLoS One. 2015 Aug 7;10(8):e0132320. doi: 10.1371/journal.pone.0132320. Erratum in: PLoS One. 2015;10(9):e0138260. PMID: 26252222; PMCID: PMC4529147.

[13] Tenney ER, Vazire S, Mehl MR. This examined life: the upside of self-knowledge for interpersonal relationships. PLoS One. 2013 Jul 31;8(7):e69605. doi: 10.1371/journal.pone.0069605. PMID: 23936057; PMCID: PMC3729952.

[14] Carapeto, MJ. Autoconhecimento: uma breve revisão narrativa. Revista INFAD 2021 Nº 2, vol. 2. ISSN 0214-9877 http://dx.doi.org/10.17060/ijodaep.2021.n2.v2.2230

[15] Souza, AS; Abreu-Rodrigues, J. Auto conocimiento: contribuciones de la investigación básica. Psicol. Estud. 12 (1).  Abr 2007  https://doi.org/10.1590/S1413-73722007000100017

[16] Telma Regina Antoniácomi Maschio. Kelly de Lara Soczek. O ENEAGRAMA COMO FERRAMENTA DE AUTOCONHECIMENTO E SUA RELAÇÃO COM A TEORIA COGNITIVO-COMPORTAMENTAL. IESSA 2017.

[17] Ghasemipour Y, Robinson JA, Ghorbani N. Mindfulness and integrative self-knowledge: relationships with health-related variables. Int J Psychol. 2013;48(6):1030-7. doi: 10.1080/00207594.2013.763948. Epub 2013 Feb 15. PMID: 23410242.

[18] LONGO, Luzia A. de C. M. Autoconhecimento e autenticação do terapeuta como meio para assegurar a excelência no atendimento de consultoria de autenticação. 2012. http://hdl.handle.net/123456789/770

[19] Brown, J. D., & Dutton, K. A. (1995). Truth and Consequences: The Costs and Benefits of Accurate Self-Knowledge. Personality and Social Psychology Bulletin, 21(12), 1288–1296. https://doi.org/10.1177/01461672952112006

[20] Wilson TD, Dunn EW. Self-knowledge: its limits, value, and potential for improvement. Annu Rev Psychol. 2004;55:493-518. doi: 10.1146/annurev.psych.55.090902.141954. PMID: 14744224.