fbpx
A Simbologia como meio cognitivo

I.

Nenhum ser vivo conhece o mundo ‘diretamente’. Sempre há uma ‘tradução’ dos ‘foras’ para os ‘dentros’, e vice-versa. Todo organismo é, nesse sentido, uma lente em si mesmo.

Também não captamos ‘todos’ os sinais do mundo, mas apenas o que é substancialmente importante para nós – para nossa permanência (sobrevivência), como sistemas que somos.

Portanto, ao abordarmos nosso tema – simbologia como meio cognitivo – precisamos começar deixando claro que, em sentido amplo, a troca de informação na natureza é claramente simbólica, na medida em que os sistemas nela presentes interagem sempre através de algum tipo de ‘linguagem’ (lato senso). Este entendimento foi, aliás, muito bem explorado pela semiótica do filósofo americano, Charles S. Peirce (1839-1914), e por muitos seguidores que lhe sobrevieram (cf. Peirce (1962), Hausman (1993), Merrell (1996)). No Brasil, por exemplo, temos o excelente trabalho de Jorge A. Vieira, que aproximou impecavelmente temas como Teoria Geral dos Sistemas, complexidade, natureza, Teoria da Informação e Semiótica peirceana, revelando como os sistemas da natureza trocam informação através de mecanismos semióticos (=sígneos), em diversas escalas (cf. Vieira (2007), Vieira (2008), Vieira (2015)); o professor do programa de Pós Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC/SP nos revela ainda em que medida a troca de matéria/energia entre sistemas é também troca de informação.

Sim, a semiótica de Peirce abre caminho para que percebamos que a capacidade simbólica, em verdade, não é apenas humana, mas tem suas raízes numa matriz muito anterior à do homo sapiens: ela pertence à natureza. Querem uma amostra? Nossa retina, com suas células nervosas próprias para tal, recebe energia luminosa (ou simplesmente ‘luz’) e a transforma em sinais eletroquímicos, que, em seguida, ‘caminham’ para dentro do sistema nervoso central. De fato, nosso sistema nervoso ‘conversa’ em ‘linguagem eletroquímica’, e traduz (ou ‘transduz’) diferentes sinais vindos dos diferentes sentidos de que dispomos para essa mesmíssima linguagem: eletroquímica. Ora, o mecanismo dá certo – por exemplo, se estivermos bem de saúde, pararemos nosso automóvel antes de batermos no automóvel que esteja ocasionalmente à nossa frente, parado diante de um sinal vermelho. Vemos o que está lá fora porque a luz que se espalha sobre as coisas do mundo atinge nossa retina que, então, converte os sinais luminosos em sinais eletroquímicos – que nada mais são do que uma representação biológica (=eletroquímica) desses sinais luminosos (!). Assim, esses sinais eletroquímicos passam a simbolizar os sinais luminosos, dentro do nosso organismo (!). Não é incrível?

 

II.

Mas, afinal, que é um símbolo? Vamos começar do começo?

A palavra ‘símbolo’ vem do grego, symbolon, que quer dizer ‘sinal, sinete’, algo que ‘faz lembrar outra coisa’. Mais para frente, essa palavra incorporou também o significado de representação (ou seja, re-apresentação).

Mas, acreditem, mesmo em grego, a origem da palavra symbolon leva a um sentido anterior ao referido acima, que não deixa de ser inusitado – syn (‘junto/conjunto’) + bolon (‘lance, arremesso’) – donde vem ‘arremesso conjunto’.

Símbolo é qualquer coisa que esteja no lugar de outra coisa, representando-are-apresentando-a. O símbolo coloca num determinado ‘aqui/agora’ algo que, muitas vezes, não está aqui, agora. Posso falar muitas coisas sobre Leonardo da Vinci (1452-1519), por exemplo, apesar desse indivíduo, assim nomeado e já falecido, não estar fisicamente presente, nem no meu tempo atual, nem no meu espaço atual. Símbolos linguísticos, a que chamamos, tecnicamente, signos, reapresentam seres como Leonardo à minha consciência, para que eu possa, então, pensar e falar sobre eles. Comigo mesma, ou com outros interlocutores.

E é aí que nosso primeiro sentido grego de ‘symbolon’ – ‘arremesso conjunto’ – mostra toda a sua riqueza. O símbolo está no lugar de outra coisa (seu referente), mas só pode ser símbolo dessa coisa se houver um vínculo, de alguma espécie, entre essa coisa e seu símbolo! Essa vinculação entre um símbolo e aquilo que ele representa chama-se semiose, ou ‘produção de signo’, e, consequentemente, produção de sentido. O símbolo remete (‘arremessa’) a outra coisa, que, por sua vez, remete (‘arremessa’) ao símbolo. O símbolo e a coisa que ele representa remetem um ao outro, reciprocamente, conjuntamente. Portanto, um símbolo propicia esse ‘arremesso conjunto’ de significados.

Símbolos, signos, representações, são o elemento central de todas as linguagens.

 

III.

Não obstante haver uma inegável semiótica da natureza (=mecanismos simbólicos operando em toda a natureza), a vivência simbólica da espécie humana chega a níveis de complexidade para o que parece difícil achar precedentes.

Conhecemos o mundo através de linguagens, que são sistemas de signos/símbolos com capacidade de articulação quase infinita. Essa articulação traduz (representa) ‘visões’ (=associação de percepções) humanas sobre diferentes objetos do mundo, que os homens acharam, e acham, por bem abordar.

Desde que construiu suas linguagens, passou a ser difícil imaginar o homem conhecendo sem seu instrumental linguístico (lato senso). Somos expostos à linguagem humana desde o nascimento, tudo ao nosso redor é linguístico, nomeado, expressado com inflexões características, que nos chamam, desde o início, a participar. E, rapidamente, sim, nós começamos a participar, entender (antes de podermos falar), descobrindo cada pedaço do mundo que a linguagem recorta e articula…

A vida simbólica humana começa com a própria vida humana – porque o mundo dos homens é um mundo linguístico, nomeado, categorizado, multiplamente caracterizado. De modo que nossa aquisição de conhecimento é toda mediada pelos produtos simbólicos que desenvolvemos, sem exceção.

 

IV.

Entre tantos tipos de símbolos humanos existentes (que não vem ao caso abordar aqui), há, por certo, um que é especialmente ‘estratégico’, e que, não se pode negar, foi e é uma grande tacada cognitiva da nossa espécie. Refiro-me ao símbolo metafórico.

O processo metafórico é fundamental para a criação de símbolos novos e, também, de pensamentos novos, além de ser a linguagem típica de nossos sonhos, enquanto dormimos. O fato de nossos sonhos serem ativamente metafóricos faz com que pareçam inicialmente malucos e/ou sem sentido. Tal aparência logo muda de status, quando vemos cada metáfora ser ‘traduzida’ pelo repertório de memórias do sonhador – quando, então, o sonho se torna bastante inteligível e contextualizado no momento existencial de quem sonhou.

Símbolos metafóricos, como todo símbolo, também estão no lugar de outra coisa, que eles representam. E o vínculo entre esses símbolos e aquilo que eles representam é um vínculo analógico.

Imaginem que S1 é o significado de alguma coisa, e S2 o significado de uma outra coisa. Podemos pensar em palavras ou imagens. Agora, adicionalmente, pensemos que essas duas palavras, ou imagens (S1 e S2) têm em comum uma parte de seus significados (expressa pela intersecção entre S1 e S2, ou S1 Ç S2). Então, nesse caso, poderei usar um termo pelo outro, e acrescentar algo mais ao sentido original. Vamos experimentar, com um exemplo extremamente simples. José de Alencar, em seu livro, Iracema, descreveu sua personagem central como ‘virgem dos lábios de mel’. Tomemos ‘lábios’ como S1, e ‘mel’ como S2. Ora, sabemos que não existem lábios feitos de mel. Mas sabemos, por outro lado, que uma pessoa jovem, na flor da idade, pode ostentar seus lábios meio molhados pela saliva (que muitas vezes apresenta certa viscosidade) de um modo bastante atraente, e que alguém, ao imaginar-se beijando-os, pode lembrar-se fugazmente do sabor de coisas doces que já tenha degustado…, e ter uma sutil sensação de estar ‘degustando’ os lábios beijados… O termo ‘mel’ compartilha da viscosidade e do brilho da saliva presente nos lábios descritos, e, junto, acrescenta mais conteúdo significativo à cena, gerando um efeito adicional e aprofundado ao que se deseja dizer – o ‘sabor doce’ dos lábios que, então, ‘alimentam’ a pessoa que os beija. Este é o sentido da metáfora – não apenas sugere uma comparação de significados, mas insinua novos traços de significado (tecnicamente chamados ‘semas’) à coisa que se está buscando descrever.

Mas, por que os símbolos metafóricos são ‘estratégicos’, cognitivamente falando?

Sentidos metafóricos autênticos surgem espontaneamente em nossas mentes, quando estamos buscando definições para aquilo de que ainda não temos exata e completa noção. Temos sensações (sentimentos tradutores de emoções, impulsos, motivações…) que vão, ao procurarmos dentro de nós a resposta que ainda não temos, acionando memórias nossas, pré-existentes, de maneira que, por analogia (semelhança semântica), certas ideias começam a se encontrar, a se condensar. Então, passamos a vislumbrar algumas formas, que corporifiquem a ‘coisa’ que estamos tentando entender. Nossas memórias nos darão respostas variadas, que já foram dadas anteriormente a questões parecidas que tivemos antes. Normalmente, o fluxo de ‘respostas’ experimentadas envolve mais de uma imagem-resposta. A associação de algumas analogias pode gerar imagens novas que, simbolicamente, consigam representar aquilo que estamos buscando compreender.

Ao trabalhar suas próprias metáforas, o ser humano acha um meio magnífico de se introduzir em campos de conhecimento ainda não muito bem explorados por ele, trazendo pedaços do desconhecido para o conhecido – porque é assim que se criam as metáforas. Esse mecanismo cognitivo é estratégico, porque um meio bastante oportuno de o sujeito de conhecimento ir fazendo uma transição entre aquilo que ele já conhece e aquilo que ele não conhece…

A psicologia profunda, por exemplo, fez uso dos símbolos metafóricos com extrema produtividade. O estudo das fundações inconscientes da personalidade humana era, na época de Sigmund Freud (1856-1939) e Carl Jung (1875-1961), uma densa floresta virgem (sim, acabo de usar uma metáfora) – os dois médicos lidavam com fenômenos psíquicos variados, cujas causas precisas, inúmeras vezes, desconheciam. Suas metapsicologias são descrições metafóricas do psiquismo humano, justamente chamadas de meta-psicologias por serem algo para além da psicologia humana concreta: tratava-se de formas simbólicas (metafóricas) de explicar a psique humana e seu funcionamento.

Hoje, podemos pesquisar com mais acuidade a consistência ou não da simbologia analítica, em seu diálogo com a neurobiologia. Hoje, ainda, temos muito mais respostas às questões que Freud e Jung abordaram pela primeira vez, no princípio do século XX. Mas só podemos fazer essas checagens porque os dois pioneiros das relações entre o psiquismo consciente e inconsciente deram o primeiro passo descritivo dessas paragens, de modo simbólico-metafórico, adentrando, assim, em territórios da mente humana até então inexplorados.

Antes de terminarmos esta seção sobre os símbolos metafóricos, talvez seja oportuno salientar que simbologias menos afeitas às ciências humanas ou biológicas encontram também um fundamento metafórico essencial em sua construção. Tomemos um exemplo de um campo mais matemático (algébrico) – vamos pensar numa famosa fórmula da Física, que consubstancia a 2a lei de Newton: F = m.a (se eu multiplicar uma determinada massa por sua aceleração, saberei quanta força está sendo aplicada a ela). Há nessa fórmula um fundo de processo metafórico, que, de fato, é um processo mental humano, natural – F, m e a são chamadas ‘variáveis’, em matemática, porque cada uma dessas letras pode ser substituída por um valor numérico específico; logo, as variáveis são genéricas. Ora, o processo que me permite atribuir valores a essas variáveis, de modo cognitivamente consistente, é um processo metafórico – qual seja: “F” representa uma força genérica; um valor específico para “F” (por exemplo, 10N – 10 ‘Newtons’) mantém um vínculo de sentido com “F”- ambos remetem a ‘força’, mas “F” é genérica, e “10N” é um valor específico. As variáveis simbolizam determinadas grandezas numa determinada relação entre si. Se eu der o valor da aceleração para a massa, estragarei o resultado, porque há um vínculo tácito (metafórico) entre a variável a e seus valores possíveis, e a variável m e seus valores possíveis. Como sempre, não posso destruir o vínculo entre um símbolo e aquilo que ele representa, porque, aí, a semiose (ou significação) estaria destruída.

Processos metafóricos abrem a possibilidade de novos traços de sentido serem acrescentados a um sentido original, basal. Por isto, processos metafóricos são geradores de novos significados, novos signos, novas linguagens, e tão imprescindíveis para as dinâmicas cognitivas presentes na natureza. Inevitavelmente, imagine-se o quanto sua importância deva ser multiplicada no caso do sistema cognitivo humano.

 

V.

Como vimos, os símbolos são mais do que ‘tradutores’ de conhecimento. Eles são o próprio conhecimento – até porque, de um modo ou de outro, eles são formas vivas em nós. As linguagens humanas compõem nossas memórias, que são dinâmicas, ‘reativas’, associativas…, e trabalham para além e aquém da nossa vontade consciente.

A existência de símbolos – em nós e na natureza – propicia a comunicação e a produção de novos conhecimentos. O conhecimento não é separado da realidade simbólica que o constitui. A capacidade simbólica de um sistema é congruente com seu nível de complexidade, a serviço das atividades cognitivas desse sistema. Assim sendo, sistemas simbólicos compõem a atividade dos sistemas naturais que, até onde se sabe, são prevalentemente sistemas dinâmicos. Sistemas dinâmicos evoluem com o tempo (Vieira, 2007) – e isto quer dizer que trocam energia/matéria (portanto, informação) com seu entorno. A conversão de um tipo de matéria/energia em outro, em meio às trocas ocorridas entre sistemas naturais, é, em si mesma, semiótica – ou seja, expressão mesma da função simbólica que a natureza espontaneamente processa.

 

 

REFERÊNCIAS:

 

  1. HAUSMAN, C.R. (1993). Charles S. Peirce: Evolutionary Philosophy. Cambridge: Cambridge University Press.
  2. MERRELL, F. (1996). Signs grow: semiosis and life processes. Toronto/Buffalo/London: University of Toronto Press.
  3. PEIRCE, C. S. (1962) 1995. Semiótica [The collected papers of Charles Sanders Peirce]. São Paulo: Perspectiva.
  4. PEIRCE, C. S. (1962) 1984. Semiótica e Filosofia: textos escolhidos de Charles Sanders Peirce. 3ed. São Paulo: Cultrix.
  5. VIEIRA, J.A. (2007). Ciência: uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão.
  6. VIEIRA, J.A. (2008). Ontologia: uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão.
  7. VIEIRA, J.A. (2015). O universo complexo e outros ensaios. Rio de Janeiro: Rizoma Editorial.