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Medula Espinhal: a raíz das sensações e movimentos

Bem-vindos a mais uma etapa de nossa exploração pela neuroanatomia. Em nossa coletânea de textos, temos explorado o sistema nervoso central, desvendando seus circuitos e estruturas. Hoje, mergulhamos na anatomia da medula espinhal, acompanhando o quadro Neurociência na Veia do canal Nada Trivial da professora doutora Carla Tieppo, uma parte essencial desse complexo sistema que desempenha um papel vital na comunicação entre o cérebro e o corpo humano.

Ao longo desta série, começamos a entender a organização do sistema nervoso em níveis hierárquicos e processos que dele advém, e agora, direcionamos nosso olhar para a medula espinhal, uma estrutura relativamente primitiva do ponto de vista filogenético, mas que desempenha um papel indispensável em nossa função nervosa.

Localização e Estrutura

A medula espinhal encontra-se alojada dentro do canal vertebral, um espaço formado pelas vértebras da coluna vertebral. Essa posição estratégica fornece proteção à medula, essencial para sua função de transmitir sinais entre o cérebro e o restante do corpo. Ao longo do eixo do corpo humano, ela se estende desde o forame magno, na base do crânio, até aproximadamente o nível da segunda vértebra lombar. Essa extensão varia de acordo com a idade e a constituição física de cada indivíduo, mas, em geral, cobre uma porção significativa da extensão do tronco. 

Embora seja uma estrutura robusta, possui um diâmetro relativamente pequeno, aproximadamente do tamanho de um dedo indicador. Essa estrutura tubular é composta por tecido nervoso altamente organizado, envolto por membranas protetoras chamadas meninges. Essas membranas ajudam a amortecer a medula espinhal contra impactos e fornecem um ambiente estável para o funcionamento adequado das células nervosas. Ela é composta por duas regiões distintas: a substância cinzenta e a substância branca, além do canal central. Vamos explorar cada uma dessas partes:

Substância cinzenta, branca e canal central

A substância cinzenta está localizada no centro da medula espinhal e possui uma aparência mais escura devido à alta concentração de corpos celulares de neurônios e dendritos. Ela é responsável pelo processamento de informações sensoriais e motoras dentro da medula espinhal. A substância cinzenta é organizada em formato de “H”, com duas projeções laterais chamadas de “corno anterior” e duas projeções posteriores chamadas de “corno posterior”. Entre esses cornos, há uma região central conhecida como “comissura cinzenta”, por onde as informações sensoriais cruzam de um lado da medula para o outro.

A substância branca envolve a substância cinzenta e é composta principalmente por fibras nervosas mielinizadas, que formam tratos ascendentes e descendentes responsáveis pela transmissão de informações entre a medula espinhal e o encéfalo, bem como entre diferentes níveis da medula espinhal. Essas fibras são organizadas em feixes chamados de “fascículos”, sendo que os tratos ascendentes carregam informações sensoriais da periferia para o encéfalo, enquanto os tratos descendentes conduzem comandos motores do encéfalo para a medula espinhal.

O canal central, também conhecido como canal medula, é uma cavidade preenchida com líquido cefalorraquidiano que percorre o centro da medula espinhal. Ele fornece suporte estrutural à medula espinhal e serve como um reservatório de líquido cefalorraquidiano, que atua na proteção e na nutrição das células nervosas.

Segmentação medular: metameria

Na medula espinhal, a organização segmentar e as repetições somatotópicas desempenham um papel crucial na percepção e motricidade de diferentes regiões do corpo humano. Essa organização reflete a distribuição de fibras nervosas sensoriais e motoras ao longo da medula espinhal, com cada segmento correspondendo a uma área específica do corpo.

A medula espinhal é dividida em segmentos, cada um dos quais está associado a um par de nervos espinhais que emergem da coluna vertebral. Esses segmentos são nomeados de acordo com a região da coluna vertebral onde estão localizados, como segmentos cervicais, torácicos, lombares, sacrais e coccígeos. Cada segmento possui um conjunto distinto de neurônios motores e sensitivos que controlam e monitoram uma área específica do corpo.

Além disso, dentro de cada segmento, há uma representação somatotópica das diferentes regiões do corpo. Isso significa que as fibras nervosas que conduzem informações sensoriais de uma determinada parte do corpo entram na medula espinhal em uma região específica, enquanto as fibras nervosas motoras que controlam essa mesma região saem da medula espinhal em uma região adjacente. Essa organização permite uma resposta rápida e coordenada a estímulos sensoriais e ações motoras em todo o corpo. Por exemplo, as fibras nervosas sensoriais e motoras que conduzem informações da mão entram e saem da medula espinhal em níveis cervicais superiores, enquanto as fibras nervosas sensoriais e motoras associadas aos membros inferiores estão localizadas em segmentos lombares e sacrais da medula espinhal.

Plexos e nervos

Os plexos nervosos são redes complexas de nervos que se formam a partir da interseção e interconexão de múltiplos nervos periféricos. Eles são encontrados em várias regiões do corpo humano, sendo os principais o plexo cervical, o plexo braquial, o plexo lombar e o plexo sacral. Eles desempenham um papel fundamental na distribuição de fibras nervosas motoras e sensoriais para os músculos e tecidos das regiões correspondentes do corpo, sendo por meio deles que os neurônios motores enviam sinais para os músculos, desencadeando movimentos, e os neurônios sensoriais transmitem informações sensoriais, como dor, pressão e temperatura, para o sistema nervoso central. Essa organização em plexos permite uma distribuição eficaz dos neurônios que garante uma resposta coordenada e precisa às demandas do corpo

Relações com o Sistema Nervoso Autônomo

Os corpos neuronais do sistema nervoso autônomo (SNA) presentes na medula espinhal desempenham um papel fundamental na regulação das funções autônomas do corpo humano. Este sistema é responsável por controlar uma variedade de atividades involuntárias, como a frequência cardíaca, a respiração, a digestão e a regulação da temperatura corporal. Na medula espinhal, os corpos neuronais do SNA estão localizados em dois principais grupos de núcleos: o núcleo simpático e o núcleo parassimpático. Esses núcleos são responsáveis por coordenar as respostas autonômicas do corpo em situações de estresse e relaxamento, respectivamente.

O núcleo simpático, situado na região torácica e lombar da medula espinhal, é responsável por preparar o corpo para a ação em situações de estresse ou perigo. Ele atua estimulando a dilatação das vias respiratórias, aumentando a frequência cardíaca e a pressão sanguínea, e promovendo a liberação de energia armazenada para uma resposta de luta ou fuga. Por outro lado, o núcleo parassimpático, localizado na região sacral da medula espinhal e no tronco encefálico, é responsável por promover o relaxamento e a restauração do corpo após períodos de atividade intensa. Ele atua diminuindo a frequência cardíaca, estimulando a atividade digestiva e promovendo o armazenamento de energia.

Coordenação de reflexos

Os reflexos são respostas rápidas e automáticas a estímulos sensoriais que ocorrem sem a necessidade de intervenção consciente do cérebro. Essas respostas são coordenadas principalmente pela medula espinhal e desempenham um papel crucial na proteção e na adaptação do organismo a diferentes estímulos ambientais. Essa coordenação é possível devido à presença de circuitos neurais específicos chamados arcos reflexos. Esses arcos envolvem a ativação sequencial de neurônios sensoriais, neurônios motores e, muitas vezes, interneurônios localizados na substância cinzenta da medula espinhal.

Quando um estímulo sensorial é detectado por receptores sensoriais periféricos, como os presentes na pele, nos músculos ou nos tendões, os sinais são transmitidos para a medula espinhal ao longo de fibras nervosas sensoriais. Na medula espinhal, esses sinais são processados e uma resposta é gerada sem necessariamente um envolvimento consciente do cérebro.

Um exemplo clássico de reflexo coordenado pela medula espinhal é o reflexo patelar, em que o joelho se contrai automaticamente em resposta a um golpe no tendão do joelho. Esse reflexo é essencial para manter a postura e o equilíbrio durante a movimentação do corpo e proteger contra lesões causadas por movimentos bruscos. Além do reflexo patelar, a medula espinhal coordena uma variedade de outros reflexos, como o reflexo de retirada da mão de uma superfície quente ou o reflexo de estiramento muscular, que ocorre quando um músculo é esticado rapidamente.

Portanto, a importância da medula espinhal na coordenação de reflexos reside na sua capacidade de garantir respostas rápidas e adaptativas a estímulos sensoriais, sem a necessidade de intervenção consciente do cérebro, o que é essencial para a proteção e a sobrevivência do organismo. Ainda assim, estes reflexos que apresentamos ainda podem possuir um componente consciente, no qual a informação na medula sobe para níveis superiores e é processada.

Portão da dor

O conceito do “portão da dor”, proposto por Melzack e Wall em 1965, descreve um mecanismo de modulação da dor na medula espinhal que influencia o processamento de sinais dolorosos provenientes de terminações nervosas periféricas. Este mecanismo envolve a interação entre diferentes tipos de fibras nervosas sensoriais e neurônios na substância cinzenta da medula espinhal, resultando na inibição ou facilitação da transmissão do sinal de dor para o cérebro.

Mecanismo

Envolve a interação entre três tipos de fibras nervosas: as fibras Aβ (de toque e pressão), as fibras Aδ (de dor aguda) e as fibras C (de dor crônica). Quando um estímulo doloroso é detectado por receptores de dor periféricos, as fibras Aδ e C transmitem sinais de dor para a medula espinhal. No entanto, as fibras Aβ, que transmitem sinais não dolorosos, têm a capacidade de inibir a transmissão desses sinais dolorosos ao ativar neurônios inibitórios na substância cinzenta da medula espinhal. Essa ativação dos neurônios inibitórios funciona como um “portão” que pode fechar ou bloquear a transmissão dos sinais de dor para os neurônios ascendentes, reduzindo assim a percepção da dor pelo cérebro.

Coordenação da ação e inibição da dor

Ele desempenha um papel crucial na coordenação da ação e inibição da dor, regulando a quantidade de informações dolorosas que são transmitidas ao cérebro. Em situações de dor intensa ou prolongada, sua ativação pode ser insuficiente para bloquear completamente os sinais de dor, resultando em uma maior percepção da dor. Por outro lado, em situações de estímulo não doloroso ou de distração, a ativação das fibras Aβ pode fechar o “portão da dor” de forma mais eficaz, reduzindo a percepção da dor.